terça-feira, 10 de outubro de 2017

ARTE E POLÍTICA

Por alguma razão a arte moderna tem sido associada ao comunismo. Curioso isso. Eis que lendo “O abuso da beleza” (Martins Fontes, 2015), do crítico de arte Arthur Danto, deparo-me por acaso a resposta que eu não esperava encontrar no livro:
Naqueles anos [da Guerra Fria] a arte moderna foi repudiada como algo subversivo, destrutivo e essencialmente antiamericano por personagens como o congressista George A. Dondero, de Michigan, que escreveu: "a arte moderna é comunista porque é distorcida e feia, porque não glorifica nosso belo país, nossa gente alegre e sorridente e nosso progresso material. [...] aqueles que a criam ou promovem são nossos inimigos" (p. 28).
Tudo aquilo que não é tradicional, pensava o congressista, é uma espécie de propaganda comunista disfarçada. Danto finaliza: “este é apenas um caso, como veremos, da politização da beleza”.



Jones F. Mendonça

REFORMA, GRAÇA E PROSPERIDADE

Muita gente evoca a teologia dos reformadores para criticar a teologia da prosperidade. Mas não foram justamente os calvinistas a defenderem a riqueza e a prosperidade econômica como sinal da graça divina? Na Europa o calvinismo foi o cavalo da burguesia.



Jones F. Mendonça

ARTE, PROPAGANDA E CONTRARREFORMA


Caravaggio gostava de retratar os santos como pessoas comuns, do povo: vestes rotas (ou até rasgadas), descalços, expressões faciais rudes, sem auréola, analfabetos (como o Mateus censurado, à esquerda). Repare que o anjo (afeminado) parece dizer “tá escrevendo errado, Mateus”. A tela da direita é o resultado de uma revisão feita após a exigência da igreja.

A influência teria vindo de seu protetor, o cardeal Frederico Barromeo (interesse pela “dimensão documental” das verdades cristãs), e dos místicos oratorianos (“função didática” da arte). As telas de Caravaggio devem ser vistas dentro do espírito de evangelização das classes populares empreendidos por setores da contrarreforma.

Leia mais sobre a função documentária da arte sacra do século XVII na seguinte obra:



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

A REFORMA PROTESTANTE EM NOVE PARÁGRAFOS CURTOS

1. No dia 31 de outubro de 1517, ou seja, há exatos 500 anos, um monge católico escreveu 95 teses - pequenas declarações - criticando uma série de abusos cometidos por sacerdotes mal-intencionados. No título das teses vinha a seguinte declaração: “Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, será discutido o seguinte...”.

2. Embora não haja certeza de que essas teses tenham sido pregadas na porta de uma igreja de Wittenberg (atual Alemanha), certo mesmo é que caíram na boca do povo. Mais que isso, o conteúdo do texto era tão bombástico que acabou chegando nas mãos do papa e de seus auxiliares. E eles não ficaram nem um pouco contentes com o que leram.

3. E olha que Lutero não pretendia criticar o Papa, mas apenas os chamados vendedores de indulgências, pessoas que vendiam títulos supostamente capazes de eliminar os pecados dos fiéis. Em sua tese 65 Lutero denunciou o uso das indulgências como “redes para pescar a riqueza dos homens” (Redes que aliás ainda “pescam riquezas” de fiéis nos dias de hoje!).

4. A prática da venda de indulgências era tão escandalosa que Lutero chegou a dizer, em sua tese 81, que estava ficando difícil, até para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida difíceis de responder, feitas pelos leigos. Lutero esperava uma reação enérgica do papa ao tomar conhecimento de suas denúncias.

5. Bem, mas não foi bem isso o que aconteceu. O monge rebelde foi chamado pelo Papa para dar explicações no ano seguinte. E como se manteve firme em suas posições, sofreu uma ameaça de excomunhão em 1520, num documento que condenava 41 de suas teses (bula Exsurge Domini). Lutero queimou publicamente a bula papal e não arredou o pé.

6. Em janeiro de 1521, diante de sua recusa em negar tudo aquilo que havia declarado, veio a excomunhão (bula Decet Romanum Pontificem). Lutero só não acabou preso porque recebeu apoio de diversas pessoas, inclusive de algumas muito poderosas, como o príncipe Frederico da Saxônia. Para sua sorte, Frederico tinha um bom plano.

7. Lutero foi levado em segredo a um castelo e mantido sob proteção por quase um ano. Em março de 1522 regressou à cidade onde havia divulgado as 95 teses que se tornaram tão famosas. Ao questionar (e enfraquecer) a autoridade do papa, Lutero acabou favorecendo a florescimento de novos grupos, com queixas e demandas diferentes.

8. Exigindo o fim da servidão – em nome da liberdade de Cristo - surgiram os reformistas radicais, como os anabatistas. Enfatizando a dimensão absoluta da soberana de Deus destacavam-se os calvinistas. Na Inglaterra, no desejo de se libertar da influência do papa em seus assuntos pessoais (ou seja, dinheiro, poder e mulher), o rei Henrique VIII criou a sua própria igreja, a igreja anglicana.

9. Seria um exagero dizer que a liberdade de culto e a tolerância religiosa são conquistas devidas à Reforma. Os reformadores não eram pessoas tolerantes como por vezes se diz por aí (Miquel de Serveto e Sebastian Castellio que o digam...). Mas o movimento deu impulso a uma série de transformações culturais, políticas, econômicas e sociais que de forma alguma podem ser negadas. Não fazia parte do projeto inicial de Lutero romper com a Igreja. Queria apenas reformá-la por dentro. Hoje a Reforma é vista como um marco na história da civilização ocidental. Lutero mirou um pato, acertou um avião.  



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

UMA FALA, QUATRO INTERPRETAÇÕES

Entre os judeus medievais desenvolveu-se uma crença que vê em cada passagem da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) quatro sentidos: 1. Sentido literal (peshat), 2. Sentido alusivo (remez), 3. Sentido interrogativo (drash) e 4. Sentido secreto (sod). O método, chamado de PARDES no século XIII, em boa parte voltado para uma leitura criativa, não foi único. 

João Cassiano (360-435), monge cristão da Cítia (atual Romênia), seguiu por um caminho bastante semelhante: 1. Sentido literal (histórico), 2. Sentido alegórico (alusivo), 3. Sentido tropológico (moral) e 4. Sentido anagógico (celestial). Lutero, no século XVI, rejeitou o método,  tratado por ele como “produto da ignorância” e “bobagem” (WA 2,509,14s).

No Alcorão, de acordo com um comentário místico atribuído ao Imam Ja'far al-Sadiq (702-765 d.C.), também se escondem quatro sentidos: 1. Expressão literal (ibāra); 2. Alusão (ishāra); 3. Sutilezas (laā'if) e 4. Realidade mais profunda (aqā'iq). A expressão literal seria para as pessoas comuns, a alusão para a elite, as sutilezas para os amigos de Deus, e a realidade mais profunda para os profetas.

Para saber mais:
1. O método (PARDES) judaico: WYLEN, Stephen M. The seventy faces of torah, 2001, p. 89. HAUSER, Alan J.; WATSON, Duane F. A History of Biblical Interpretation, 2003, Vol. 2: p.171
2. O método cristão de Cassiano: SCHOLZ, Vilson. Princípios de interpretação bíblica, 2006, p. 85.
3. O método islâmico: Da Spiritual Gems: The Mystical Qur’an Commentary ascribed to Ja’far al-Sadiq as contained in Sulami’s Haqa’iq al-Tafsir, Fons Vitae, 2011.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de outubro de 2017

DÉBORA, AS ABELHAS E AS ORAÇÕES PIEDOSAS

O nome próprio "Deborah", tomado da famosa personagem do livro bíblico de Juízes, significa “abelha” (Deborah; Jz 4-5). Curioso que a raiz hebraica da palavra Deborah (D-B-R) é a mesma de Dabar (palavra, discurso, fala). Há alguma razão para isso? Para Yona Sabar (Jewish Journal), a resposta é sim.

O pequeno inseto teria recebido este nome dada a relação entre seu zumbido e os sons da fala humana, particularmente àquele produzido por um grupo de judeus em oração. Tal relação de semelhança sonora explicaria a semelhança consonantal entre a palavra “fala” (D-B-R) e a palavra “abelha” (D-B-R-H). Convencido?

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Jones F. Mendonça

EM CASO DE PECADO, ABRACE O FRANGO

"Depois que o templo judaico foi destruído no ano 70 d.C., pelos romanos, o sacrifício de animais deixou de ser realizado pelos judeus". Esta afirmação, presente um muitos livros, exige uma pergunta: por quais judeus?

Um grupo de judeus ultra-ortodoxos pratica um antigo ritual que consiste em sacrificar frangos antes do Yom Kippur (será celebrado em 30 de setembro próximo). Eles acreditam que por meio do ritual é possível transferir os pecados cometidos pelo fiel ao frango. O ritual é conhecido como kapparot (plural de kapparah = expiação).

Num retiro de judeus liderados por uma sacerdotisa vegana de Connecticut o ritual sofreu uma pequena modificação. Ao invés de abaterem o frango, resolveram abraçá-lo carinhosamente. Que fofo, não?

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Jones F. Mendonça

O DADAÍSMO E O URINOL DE DUCHAMP

Vejo muita gente associando a abolição da beleza como objetivo último da arte aos movimentos de esquerda. Mas o grande golpe nas convenções tradicionais de arte veio do dadaísmo, movimento artístico do início do século XX que pretendia demolir toda a estrutura da representação racional. Está associado ao anarquismo, ao niilismo, ao libertarismo, mas não ao marxismo.

Uma obra muito famosa (e criticada) surgida no embalo desse movimento é o urinol de porcelana branca, idealizado por Marcel Duchamp, exposto numa mostra de artes em Nova York ("A fonte", foto). Embora você possa achar o dadaísmo e a obra de Duchamp uma grande bobagem, o movimento ajudou muitos artistas a se libertarem das restrições artísticas tradicionais e despertou neles a busca por novos horizontes.

Um dos frutos do dadaísmo é o surrealismo, movimento que deslocou o foco da beleza para as reações emocionais e os estímulos do inconsciente. Então embora não haja nada para ser apreciado no urinol de Duchamp (exceto para os homens com bexiga cheia), a mensagem por trás da obra teve uma dimensão revolucionária.



Jones F. Mendonça

O JUDAÍSMO E A SERPENTE DO ÉDEN

Certa vez alguém me perguntou a respeito de como os judeus do primeiro século interpretavam a figura da serpente em Gn 3. Expliquei que provavelmente não a viam como representação de Satanás, como fez a tradição cristã no segundo século. Mas fiquei devendo um exemplo.

Abaixo a interpretação alegórica feita por Filon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.):
Deus, que criou todos os animais na terra, arranjou esta ordem muito admiravelmente, pois ele colocou a mente em primeiro lugar, isto é, homem [...]; depois o sentido externo, isto é, a mulher; e, seguindo a ordem regular, chegou ao terceiro, o prazer [...] representado sob a forma da serpente, pois assim como o movimento da serpente é cheio de muitas sinuosidades e variações, assim também é o movimento do prazer (Interpretação alegórica II, 74).
Bem, a razão para a escolha da mulher como alvo da serpente é explicada em outro texto (as mulheres não vão gostar!):
a mente da mulher é mais afeminada, de modo que através de sua suavidade facilmente é enganada e capturada por convicções falsas que imitam a verdade (Perguntas e respostas sobre Gênesis I, 34).



Jones F. Mendonça

O BANHO DAS ALMAS

Inspirado em Ap 1,5, Jean Bellegambe pintou esta tela (Banho místico das almas, 1525). Uma representação bastante bizarra para um observador moderno. Fora do contexto alguém certamente a classificaria como herética, blasfema e ofensiva. Ah, as donzelas assanhadinhas à esquerda da cruz são as virtudes teologais: a fé, a esperança e o amor.